Elson Guimarães Gottschalk

04/12/1979

SAUDAÇÃO A GOTTSCHALK

Por Arnaldo Lopes Süssekind

Maio de 1941. Na Cidade de São Paulo, o Instituto de Direito Social, constituído três anos antes, realiza o Primeiro Congresso Brasileiro de Direito Social, visando a comemorar o cinquentenário da encíclica Rerum Novarum. De todas as partes do país, inúmeros jovens, interessados no então novo ramo da enciclopédia jurídica, atendem à convocação dos organizadores desse auspicioso conclave, dentre os quais cumpre realçar as figuras de Cesarino Júnior, Ruy de Azevedo Sodré, Vasco de Andrade, Fernando Calage, Souza Neto e Sabóia de Medeiros. E os jovens estudiosos do Direito do Trabalho e da Previdência Social lá encontraram juristas já renomados, como Oliveira Viana, Orlando Gomes e Rego Monteiro.

Foi nesse Congresso – consagrado como marco da história dos direitos sociais-trabalhistas no Brasil – que conheci Elson Gottschalk, bacharelado poucos meses antes pela tradicional Faculdade de Direito da agora Universidade Federal da Bahia.

Configurando verdadeira premonição do que seria sua longa e eloquente carreira de magistrado, Gottschalk apresentou ao Congresso o seu primeiro ensaio jurídico: “O Juiz na Justiça do Trabalho”. E eu participei dos debates que culminaram com sua unânime aprovação, tal como ele o fez, na discussão e acolhimento da minha tese sobre “A fraude à lei no Direito do Trabalho”.

Tornamo-nos amigos, desde então, a ressaltarmos, com Elson, que “a única maneira de ter amigos é ser amigo”. E nem a circunstância de residirmos em distintos Estados impediu o crescimento constante do nosso grau de afetividade. Mesmo porque comungamos os mesmos ideais, seja no plano do direito, seja na esfera da moral, buscando a prevalência dos ideais da justiça social dentro da moldura demarcada pela ordem jurídica democrática. Demais disso, sempre nos encontramos em congressos e seminários e juntos integramos, há vários anos, a direção da Academia Nacional de Direito do Trabalho.

Eis por que o Colégio Acadêmico decidiu indicar-me para abrir os braços deste sodalício na recepção ao novo titular da Cadeira n. 37, que tem como patrono o venerável homem público Cesar Salgado e como seu último ocupante o saudoso e notável jurista Coqueijo Costa.

Permiti, Senhor Presidente, mais um depoimento sobre o Primeiro Congresso Brasileiro de Direito Social, que se me afigura necessário à história do nosso Direito do Trabalho.

O anteprojeto e o projeto final da Consolidação das Leis do Trabalho foram elaborados nos anos de 1942 e 1943 por comissão escolhida pelo preclaro Ministro Alexandre Marcondes Filho, composta dos Procuradores Luiz Augusto do Rego Monteiro, Dorval Lacerda, José de Segadas Vianna e este que vos fala, dela participando, em determinada fase, o Consultor Jurídico do Ministério do Trabalho Oscar Saraiva. Os títulos concernentes à organização sindical e à Justiça do Trabalho e seu processo foram inseridos, sem qualquer modificação de fundo, no texto consolidado, porquanto correspondiam a decretos-leis assinados entre 1939 e 1942. Essa assimilação não poderia deixar de operar-se, posto que vigente estava a mesma Carta Magna, instituidora de uma organização corporativa cujo funcionamento dependia da estrutura sindical adotada pela recente legislação, enquanto que a Justiça do Trabalho havia sido instalada a 1º de maio de 1941.

Releva ponderar, neste passo, que, para surpresa daqueles que, durante anos, ouviram críticas à legislação sindical brasileira, os três princípios cardeais do sindicalismo corporativo foram explicitamente consagrados pela Assembleia Nacional Constituinte na Carta Magna promulgada no ano em curso: o monopólio da representação pelo sindicato único; a estruturação obrigatória por categoria, que pressupõe o prévio enquadramento sindical; e a contribuição sindical compulsória de todos os empresários e trabalhadores.

A criação de normas, produzida em 1943 embora sob o rótulo de “Consolidação”, verificou-se preponderantemente no campo do direito individual do trabalho. Os títulos sobre a “Introdução” e o “Contrato Individual do Trabalho”, quase intocados nestes quarenta e cinco anos, não correspondem a disposições pretéritas; mas a nova ordenação sistematizada não poderia ser omissa a respeito. Por seu turno, os preceitos gerais e especiais de tutela do trabalho exigiram ampla revisão, porquanto as respectivas leis, adotadas nas gestões dos quatro primeiros Ministros do Trabalho (Lindolfo Collor, Salgado Lima, Agamenon Magalhães e Waldemar Falcão) não configuravam um sistema completo e harmônico, tendo sido decretadas algumas delas para o atendimento de situações conjunturais.

Para a execução dessa imprescindível tarefa de reformular e complementar a nossa legislação trabalhista, duas foram as principais fontes materiais que inspiraram a precitada Comissão:

a) as convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho, a refletirem soluções de caráter geral e universal;

b) as conclusões aprovadas pelo Primeiro Congresso Brasileiro de Direito Social, cujas proposições sintonizavam a doutrina prevalente com a realidade sócio-econômica do nosso país.

Por conseguinte, assim como a famosa encíclica de Sua Santidade o Papa Leão XIII exerceu incontestável influência, em inúmeros Estados, na adoção de leis sociais-trabalhistas, assim também o mencionado Congresso se tornou fator de relevo na consolidação do nosso direito positivo do trabalho.

Nascido na cidade do Rio de Contas, em 1914, filho de José Henrique Gottschalk da Silva e Ilídia Guimarães Gottschalk da Silva, Elson percorreu com brilho invulgar as nobres carreiras de magistrado e de professor universitário.

Classificado em primeiro lugar no concurso para o Ministério Público do Estado da Bahia, foi ele nomeado, em 1941, Promotor de Itapira. No mesmo ano, o Presidente Getúlio Vargas o nomeou Suplente de Presidente da 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de Salvador. Decorrido um biênio, passou a Juiz-Presidente desse mesmo órgão da Justiça do Trabalho. Em 1951, foi promovido para o Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, sediado em Salvador, onde permaneceu até sua aposentadoria, em 1978. Nessa judicatura, onde grangeou a admiração dos seus colegas e o respeito do Ministério Público e dos advogados, Gottschalk emprestou notável consistência jurídica a seus acórdãos, que, por isso mesmo, passaram a frequentar iterativamente as revistas especializadas e os repositórios de jurisprudência trabalhista.

Sua atuação como magistrado de escol permite recordar expressiva e verdadeira observação de Délio Maranhão:

“O Direito e a Justiça nada mais serão que belas palavras, mais do que palavras, ainda que belas, se aquele sobre quem recai a imensa responsabilidade de julgar, se aquele que for juiz, sendo homem, não for um homem à altura de ser juiz; se não guardar na sua mente o pensamento de Kant, segundo o qual todas as coisas têm preço, mas só o homem tem dignidade”.

A partir de 1957, Gottschalk respondeu à sua vocação de professor. Nesse ano obteve, por concurso, a livre docência da Faculdade onde se tornara afilhado de formatura do mestre Orlando Gomes. Dois anos depois conquistou a cátedra de Direito do Trabalho, sendo, em 1970, eleito Vice-Diretor da Faculdade. Em 1972, no exercício da direção da Faculdade, coordenou o “I Simpósio Latino-Americano de Direito do Trabalho e da Previdência Social”, que congregou na Bahia renomados juslaboristas do nosso continente.

Paralelamente às suas carreiras na magistratura e no magistério, Elson desenvolveu contínua atividade nas letras jurídicas, tornando-se autor de renome nacional e internacional: “A duração do trabalho”, em 1951; “Instituto das férias”, em 1953; “Férias anuais remuneradas”, em 1956; “Jus variandi no contrato de trabalho”, sua esplêndida tese de concurso, também em 1956; “Conselho de empresa”, em 1958; “Curso de Direito do Trabalho”, em coautoria com Orlando Gomes, com dez edições a partir de 1963, além de uma edição em espanhol, publicada em 1978 no México; “Problemática da produtividade da mão-de-obra”, em 1983.

A vinculação de Elson Gottschalk com a cultura italiana está certificada nos prêmios que recebeu, em 1958 e 1963, por trabalhos literários que produziu. Em 1967, ele foi convidado pela “Academia Giuridica Umbra” e pelo “Centro Internazionale Magistrati Luigi Severino” para proferir uma série de conferências na “Università per Stranieri de Perugia”. O êxito das suas aulas versando o Direito do Trabalho no Brasil foi registrado, com destaque, nos jornais italianos “Il Messagero” e “La Lazione”. Foi, por isso, convidado pelo Embaixador brasileiro em Roma, para proferir palestras na Rádio do Vaticano, com Tradução simultânea para inúmeros países e ampla repercussão em nossa imprensa.

Os laços envolvendo o novo membro desta Casa na cultura italiana assumiu grandeza especial no estreito vínculo espiritual que manteve com a notável jurista Luiza Riva Sanseverino. Foi em razão dessa amizade que a saudosa professora veio por duas vezes ao Brasil: em 1972, para o IV Congresso Iberoamericano de Direito do Trabalho e Previdência Social, quando participou, juntamente com Elson, da V Comissão, que tive a honra de presidir; um ano depois, sempre ao lado de nosso confrade, para proferir inesquecíveis conferências em algumas Universidades brasileiras. Daí nasceu o convite da LTr Editora e da Universidade de São Paulo para que Sanseverino autorizasse Gottschalk a traduzir o clássico “Corso di Diritto del Lavoro”, já na sua undécima edição italiana. Conforme assinalaram as editoras ao abrirem a publicação no nosso idioma:

“Fixando o nome do professor Elson G. Gottschalk, os responsáveis pela Editora e pela Universidade nada mais fizeram do que conjugar a dimensão da obra e estatura de seu artífice com a perícia e competência do tradutor. A obra jurídica é a um tempo obra de arte, e tal como o restaurador de uma relíquia há de ser consumado artista, também o tradutor deve estar possuído, no ato de recriação, daquela sensibilidade capaz de penetrar não só a obra mas o pensamento e o sentimento de seu autor. O Prof. Gottschalk alia à qualidade de consumado jurista a condição de velho amigo da Autora do CORSO, com a qual mantém, desde longos anos, assídua correspondência, e relações de amizade pessoal, conhecendo, proximamente, seu pensamento.”

Além desses dados, que revelam o invulgar sucesso da vida pública de Elson Gottschalk, cumpre aduzir que ele participou, com brilho, de diversos congressos nacionais e internacionais e publicor centenas de trabalhos em revistas técnicas latinoamericanas. Contudo, acima de todos os fatos aqui narrados, o que está marcado com letras de ouro no seu coração é, indubitavelmente, o seu relacionamento com o preclaro Orlando Gomes, que dignificou esta Academia como titular da Cadeira n. 1. Esse mestre do Direito se tornou, a pouco e pouco, não apenas um dileto e fraterno amigo de Elson, com intensa convivência dentro e fora dos círculos jurídicos, mas uma espécie de pai espiritual e paradigma, a motivar-lhe a inabalável crença nos valores e instrumentos do Direito.

Senhor Presidente, Elson Guimarães Gottschalk sempre empreendeu apaixonadamente os encargos que a vida lhe atribuiu, como que a comprovar a observação de Stendhal segundo a qual “Le bonheur consiste à faire de son metier sa passion”.

E é, certamente, com essa paixão que há de dedicar-se às solicitações desta Academia, que se engrandece ao recebê-lo como titular da Cadeira 37.

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Fonte: Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, 1989, v. 58, p. 144-148.

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